domingo, 8 de janeiro de 2017

CNEC 2016

É um campeonato de "escrita criativa" promovido por um cara chamado Pedro Chagas Freitas. Ele é pop. Muito amado e odiado. Tem uns textos dele que eu gosto. Outros confesso que acho ridículos. Tipo algumas bobagens que há por aqui.
Foram 10 semanas. 10 propostas. 10 textos de até 300 palavras. Fiquei em décimo lugar.
Cá estão os 10.


1 - (o texto deveria começar com a palavra "quero")


Quero-quero é uma ave pouco estudada.

Quero te querer cada vez menos, queridx.

Os quero-quero costumam andar em pares.

Quero que a carência que parece me querer tão perto, queixe-se de solidão pior que a minha.

Quero-queros são vigilantes..

Quero que você saiba que te quis mais que deveria e que te querer não levou-me onde eu queria estar: (dentro) você.

Quero-queros são territoriais

Quis que fossemos um, três.

Quero-quero são, em geral, monogâmicos.

E eis que me encontro só.

Com você

Cuspindo no nó que nós fomos...somos....seríamos....se não fossemos nós

Te quero mais agora que não te quero mais.

Os quero-quero começam a voar com sessenta dias de vida

Vá embora, em paz.

-       Afinal, o que é que você quer de mim!??
-       Que você me queira, afinal.


Silêncio.


“Querer é poder” diz o ditado errado que me ensinaram.

Eu,  que já quis ser médico, astronauta...hoje não quero.

Nada.

Esquecer o significado do querer.

Quero.

quero.


2 - (A história deveria se passar dentro de um comboio)


01
03
02
04
05
Foi no assento de número 07 que meu olho viu o teu.
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21 segundos pensando em você. Pensando em voltar, em perguntar se o assento 05 está ocupado e se posso ficar ao teu lado pra sempre. Até a próxima estação.
Meu lugar é o 32.
Ela deve ter uns 19 anos, que absurdo. Nem pense nisso.
Transpiro e passo direto para a carruagem bar.
Fumar, beber para esquecer ou para tomar coragem.
Peço um café.
Mexo no celular.
Volto para o meu lugar.

Shhhhhiiiiuuuuuu....

Silêncio.

A bala passou rasante entre os assentos 15 e 13 e alojou-se no crânio de Pedro, 6 anos.
Era a primeira vez que viajava sem os pais. Estava com a vó, Neide, 67, que ainda não consegue entender o que se passa com o neto.
Horror.
Pedro, estático, desaba seu pequeno braço pelo corredor do comboio, fica com os olhos vidrados na parte traseira do assento 07. É onde você está, sentada. Em estado de graça.
A bala que atingiu Pedro tinha o seu nome...que eu nem sei.
Fui eu.

Errei.

Em sair de casa naquele dia, imagino.
Nunca tive boa pontaria.                                                                Assinado: Cupido, 2016


3 - (A história deveria ter três personagens; uma mulher, uma criança e um palhaço)


Os Garcia


Estavam lá os três: a criança, a mulher e o palhaço.
Insatisfeitos.
A criança querendo ser mulher.
A mulher querendo ser o palhaço
O palhaço querendo deixar de ser, por causa de sua mulher que lhe abandou levando consigo a criança.
Agora ele vaga pelo circo de vida choroso e sem graça, na esperança de que o espetáculo termine o quanto antes.
Na verdade ele sempre foi um malabarista. Era capaz de equilibrar até sete mulheres em um só coração, sem deixar cair...mas havia ela....ela.
Foi demais pra ela ficar assistindo tudo da plateia. Virou fera, bicho que come a cabeça do domador.
A dor indomável serviu de estrada...partiu pra longe, sem olhar para trás.
A criança foi junto, não teve escolha porque ainda é criança e criança não escolhe, obedece.
(Dizem que é a cara do pai e naturalmente engraçada. O que já foi chamado de dom, hoje é visto como maldição, Deus a livre de ser palhaça!)

Quinze anos depois a criança já não obedece mais. Decidiu ir atrás do pai, aquele palhaço. Encontrou-o, foi frustrante. Se arrependeu. Era melhor ter deixado tudo como estava. Apenas uma memória tragicamente engraçada.
Nada mais decadente que um palhaço decadente. Antes ladrão de mulher, agora não encontra quem lhe queira, nem crianças.
A mulher hoje tem barba, chama-se Orácio e não quer saber de amor.

-       Pedro, que história mais estúpida, para de inventar essas bobagens para a menina!

A pequena ria que só ela. As histórias que eram para dormir invariavelmente a faziam ficar acordada a noite toda, pensando...

Estavam lá os três: a criança, a mulher, o palhaço.
Satisfeitos.
A criança sendo criança
A mulher sendo mulher.
O palhaço sendo palhaço.


4 - (Era pra escrever o último capítulo de um romance)


CAP XIII (FINAL)

Você, querido leitor, se teve a audácia ou paciência de chegar até aqui, meus parabéns, o mérito é todo seu, afinal até agora não ofereci nada de extraordinário, nada inovador, nada que que não pudesse ser encontrado com maior qualidade em Machado de Assis, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues ou até mesmo em bulas de remédios.
“O caminho é o fim”, já dizia o poeta, e se você parar para pensar por alguns instantes, poderá considerar seu trajeto até aqui como pura perda de tempo.
Você tem razão.
Pois se há algo que não se recupera é o tempo perdido.
Me desculpe.
Foi no século XIII que o homem inventou o relógio e desde então a coisa desandou para meros números. De lá pra cá, como tudo, o tempo tornou-se mercadoria.
“Time is money”, já dizia o pateta.
Eis que hoje a riqueza real e concreta é ter tempo para se fazer o que se quer.
Que bom que você me quis até o fim. Obrigado
Essa história de que estar sempre ocupado com trabalho ou afazeres dá sentido à vida é , a meu ver, bobagem.
Afinal, gastar e vida é usa-la ou não usa-la?
Se você perdeu horas de sua vida por aqui, sinto muito. Mas lhe digo, você tem sorte.
Aquele que tem tempo para perder com livros é o verdadeiro vencedor do século XXI.
Obrigado pelo privilégio de sua companhia, obrigado pela atenção dispensada. Saiba, você não perdeu nada. Você é rico.
É no capítulo XIII que nos despedimos, siga sua vida, perca seu tempo como lhe for mais conveniente doravante. (Lhe recomendo meu último livro que pode ser encontrado nas melhores livrarias por 19,90)
Se este é o final de um romance, façamos então em grande estilo: te amo.
Valeu cada segundo/centavo.


5 - (Era pra fazer uma história que se passasse numa livraria)


Brentano’s farewell ou O Livro da Memória

El Péndulo reflexionante que a vida é…
Lembra, amor? Estávamos no México, em lua de mel, após nosso casamento literário na Selexyz.
Trabalhávamos simultaneamente em nosso último romance que seria publicado em fascículos diários por todos os jornais do mundo. Um contrato vitalício.
Foi quando descobri o teatro.
Um palco dentro de uma livraria pode confundir qualquer um…e foi o que aconteceu. Você escolheu os bons ares d’ El Ateneo para me mostrar que minha teoria estava errada: “não é em festas nem em bares que as pessoas interessantes estão mas sim nas livrarias, é nas livrarias que as coisas acontecem”
De fato nosso encontro aconteceu, mas enganei-me sobre todo o resto. Quem dera você fosse só ficção…
Descobri seus casos com Hemingway, Fitzgerald e Joyce. Todos de uma vez, abertos, te penetrando, largados na sua cama.
Meu amigo Galignani depois me contou que você também se casou com Shakespeare & Co na Catedral de Notre Dame, que infame! (Quantos mais você enganou?)
Você se Livraria da Vila de amantes que construiu? Traçaria um novo Corso Como se nada tivesse acontecido? Escreveria um ponto final?
Claro que você dirá que sim pois és uma rapsódia humana. Mas eu não seria capaz de continuar…são muitos autores, muitos personagens para apenas um par.
Nossos caminhos cruzaram letras simples que formaram palavras fáceis, compondo frases curtas, que ocuparam páginas e mais páginas com língua morta.
Agora devem seguir paraLellos.
Achei meu Porto.
Vou abrir um restaurante italiano em Manhattam, especializado em Rizzoli, e onde iletrados poderão comer de graça.
Quem souber ler pagará.
Quero me distrair pra te esquecer.

Saí....
                                                                                                       ...Voltei.


Hoje está impossível.
Rasguei suas fotos, bilhetes, roupas...quero rasgar minha cabeça pra ver se me Livro da Memória. Como, se você é a própria história?


6 - (Era pra começar com a frase: "Já não o via há mais de uma década")


                                                Voilà


Já não o via há mais de uma década quando decidiu deixar tudo como estava, não cutucar, não arrancar a casca da ferida.
Foi no nono ano de distância que entendeu o real tamanho do(des)encontro.
Ao oitavo ano, esqueceu-se de que um dia haviam se conhecido. Foi neste ano que esqueceu-se do nome dele.(mentira).
A “crise dos sete anos” foi implacável. Talvez este tenha sido o ano mais difícil.
No sexto ano de distancia, realmente acreditou que nunca mais o veria(mentira)
Cinco anos haviam se passado mas a sensação era de que só haviam se passado quatro.
Três anos, mais de mil dias e nenhuma notícia. Nem uma.
O segundo ano foi marcado pela morte do pai. Luto sobreposto. Lutou sozinho.
No ano em que se separaram, emudeceu.

Marcou o tão famigerado reencontro para ontem.

Depois de amanhã decidiu que não vai. (mentira)


Foi contando passos.
São exatamente 431 do 25 da Rue de Rebeval até a porta do Parc de Buttes Chaumont.
Hoje é 16 de maio, são 7:33am

Lá está.


-       Continuas lindo
-       Não diga isso.

Silêncio.

-       Eu senti muito a sua falta
-       Não digas isso.



Silêncio maior que o anterior.





            -Não me diga o que devo ou não dizer!
            -Anda cá.

        E beijaram-se por outros dez anos.


7 -  (Era pra começar com a frase : "Chegou à hora marcada)


                                                Zeus hospitaleiro



Chegou à hora marcada.
Claro, desta vez nada dependia dele.

Era atrasado por natureza.

Aprendeu a falar aos 6 anos de idade, escrever aos 12.
Esperava por isso há 33.

Escolheu injeção. Sempre gostou de agulhas.
Nem tinha dito sua primeira palavra, já sabia que havia prazer em dor e morte.

Instinto talvez?

Gostava de maltratar, matar, cortar, brincar com vísceras e sentir o cheiro.

Degolar saúvas,esmagar anelídeos.

Em seguida, asfixia em pequenos mamíferos.

Ratos, coelhos, gatos, cães, gente.

Matou muita gente.

Sem remorso.

Sentia-se um Deus grego que  se fortalecia com a energia emanada dos sacrifificios que oferecia a si mesmo. À esmo.

Alimentava-se disso.

Era feliz.

Gostava de ver órgãos pulsando. Espasmos.
Gostava de ver os sistemas entrando em colapso até pararem por completo e então instaurar-se o silêncio.
Fascinava-lhe o processo de enrigecimento do rigor mortis.
Quanto mais lento melhor. Pensa.

Ao todo foram 33 humanos, de ambos os sexos e das mais variadas idades.
Sim, com requintes daquilo que chamamos crueldade. (ele não ve assim)

"Um por ano de vida, hã. Que coincidência. Nunca tinha pensado nisso. Vocês me pararam na hora certa, parabéns, obrigado"

Quando lhe perguntaram sobre a última refeição, ele questionou quem pagaria a conta.

 - O estado do Alabama, senhor.

Pediu uma Pizza Royale 007 feita por Domenico Crolla. (Era fã de Domenico e de James Bond).

Comeu metade e jogou a outra metade fora.

Estava satisfeito.

São 22:16hs do trigésmo quadragésimo primeiro dia do ano.

Eis que foi-se.

Adeus.


8 - Era pra ser uma carta de uma criança para sua avó


Te amo mais que a minha mãe não quer deixar eu comer bolacha. Quero morar com você. Vem mi busca.

Assinado: Michelle


9 - Era pra ser uma carta de uma avó para um neto.


Coimbra, 23 de Dezembro de 2016

Querido,

Difícil escrever para quem nem nasceu.
Teus pais ainda não decidiram teu nome, estão entre Rui e Miguel (Prefiro Rui)
Escrevo-lhe esta carta para que leia apenas quando tiver completado 18 anos.
Trata-se de um pretenso manual de sobrevivência.
Saiba: Você tem sorte, muita sorte.

-       Você não é melhor nem pior que ninguém.
-       As melhores coisas da vida não são coisas.
-       Mude de opinião à vontade
-       Não reclame, agradeça.
-       Respeite todos que passarem por seu caminho.
-       Observe muito, escute tudo, fale o mínimo necessário.
-       Paciência não é algo que você tem estocado e se esgota mas sim algo que você deve desenvolver infinitamente
-       Você não precisa saber o que quer fazer da vida.
-       Imaginação é inteligência
-       Culpa não existe.
-       “Por favor” e “obrigado” são gratuitos, use-os.
-       Tenha um cachorro
-       Diga que ama seus pais todos os dias.
-       Pratique esportes
-       Garotas não querem roupas, jóias, carros...garotas querem comida.
-       Abrace seus amigos.
-       Aceite sua própria mediocridade
-       Faça psicanálise.
-       Não se leve tão à sério.
-       Seja contemplativo
-       Não compare sua vida com a de outras pessoas.
-       Você também vai morrer (espero que tenhas tempo de conhecer teu neto)

Imagino que você não será capaz de seguir tudo isso à risca, ninguém é. Mas saber já ajuda um bocado, não?

Te amo


Beijos, Vó Tereza.


Pedro, 13 anos, depois de ler a carta que encontrou na última gaveta da secretaria do escritório de sua casa.

-       Pai, porque eu não me chamo Rui?
-       Desculpe filho, não entendi..
-       Eu te amo, por favor, quero um cachorro, obrigado.



10 - Era pra escrever uma história que se passasse num conto do Neruda


Era uma vez, uma terra de semente inculta e bravia,
onde não havia esteiros ou caminhos.
Foi sob o sol desta terra que minha vida se alongou e estremeceu.

Meu Pai em vida nada pode.
Tinha olhos doces demais, quase não falava, foi não sei quantas vezes passado para trás.
Como meu pai nada pode, as estrelas me abrasaram as faces quando escureceu-me a vista o mal de amor. Ah…o amor. Não o culpo

Na doce fonte do meu sonho
outra fonte tremida se reflectiu. Deu-se o encontro.

Era Ela.
Era Deus.

Porque me deu o que me deu e porque depois
conheci a solidão do céu e da terra?

Por que ela?
Por que, Deus?

Olha, não sei dizer…- disse.

“Minha juventude foi um puro
botão que ficou por rebentar e perde
a sua doçura de seiva e de sangue.

Fiz homens, mulheres, carnes, mães.

Fiz o sol que cai eternamente
e que agora cansou-se.

Fiz o outono e o desencontro que se deu”  


Ah, meu pai, nada puderam teus olhos doces. Não o culpo

Sei que escutarei de noite as tuas palavras:

... menino, meu menino...Jesus

E na noite imensa
com as feridas de ambos seguirei para Pasárgada, pois lá sou amigo do rei.
      Amém.